18 dezembro, 2009

TRABALHO INFANTO-JUVENIL: A retroação na história da organização social do trabalho

Maria Aparecida Cecílio
Doutora em Educação; Depto de Teoria e Prática da Educação – Universidade Estadual de Maringá (UEM); Programa de Pós-Graduação de Educação da UEM; Grupo de Estudos e Pesquisas e Políticas e Gestão Educacional (GEPPGE-UEM).
OBSERVAÇÃO:
Artigo publicado na Revista COMUNICAÇÕES, da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP/SP, Ano 6, número 2, novembro 99, pp. 170 a 180 – ISSN 0104-8481.

O objetivo deste artigo é iniciar um estudo a respeito da utilização da mão-de-obra infanto-juvenil no campo. Para buscar entender essa prática, é preciso lembrar que a saída do homem do campo para as cidades foi motivada, em grande parte, pelo processo de industrialização das cidades.
A história da organização social do trabalho nos mostra que o processo de industrialização mundial agregou grande população infanto-juvenil oriunda do campo como mão-de-obra lucrativa em diferentes partes do mundo capitalista em nome da produção.
Para analisar esta questão como início de estudo, observamos que Marx ao buscar rumos para a “Crítica da economia política”, se orienta pela idéia de concreto como sinal de unidade do diverso para a realização sintética, porém reflexiva de uma sistemática de pensamento. Constatamos que essa busca levou-o a algumas generalizações que facilitaram a construção de parâmetros de análise vinculados à prática social da produção como algo concreto e abstrato ao mesmo tempo. Concreto porque pressupõe a determinação de relações, e abstrato porque possibilita ao pensamento apropriar-se do concreto para representá-lo.
Tais observações nos ajudam a caminhar na busca de rumos para nossa análise pressupondo que a realidade do final do século XX tem como problema histórico que buscamos entender, a concentração de famílias recusadas pelas empresas urbanas que servem aos interesses de produção das agroindústrias fornecendo mão-de-obra de crianças e adolescentes.
O fato de a criança e o adolescente não contarem com organização jurídica de defesa de sua cidadania com poder de fazer valer esse direito humano favoreceu o desenvolvimento da exploração do capitalismo rural sobre essa população.
O setor rural, como é o caso do Brasil, com a instalação das agroindústrias exportadoras, tornou-se campo de concentração da agregação de crianças e adolescentes nas frentes de trabalho penoso longe das vistas da população politicamente ativa. Esse fato é de relevância para a compreensão da retroação como categoria de análise das ciências cognitivas uma vez que pretendemos situar nossa argumentação no trabalho infanto-juvenil do setor rural do espaço geográfico brasileiro contemporâneo.
A utilização da mão-de-obra infanto-juvenil, tanto no campo como na cidade, contribui para a extinção de gerações sadias físicas e mentalmente. Essa prática nada mais é do que a comprovação da falta de inteligência humana presente na organização dessa forma de captura de capital financeiro desvinculado do compromisso de garantir a vida digna ao trabalhador.
No ano de 1995, a UNICEF publicou relatório sobre a Situação Mundial da Infância que resultou do Encontro Mundial de Cúpula pela criança no ano de 1990. Vejamos uma conclusão mais generalizada divulgada pela UNICEF (1994):
Uma subclasse está, portanto, sendo criada, sub-educada e sem instrução, colocando-se abaixo dos piores níveis de progresso econômico e social, vítima da pobreza do passado, de salários reais decrescentes, e dos desgastes das redes de segurança social na década de 80.
Ao lado das tragédias mais visíveis de conflitos violentos ou de catástrofes súbitas, este processo mais sutil de marginalização econômica também está afetando muitos milhões de crianças no mundo de 1994, aumentando a probabilidade destas crianças não conseguirem desenvolver seu potencial físico e mental, não conseguirem completar a escola, não conseguirem encontrar trabalho, e não conseguirem tornar-se adultos bem adaptados, economicamente produtivos e socialmente responsáveis. (UNICEF, p. 3, 1995).

No Brasil o processo de agregação de mão-de-obra infanto-juvenil tem na agroindústria exportadora uma verdadeira fábrica de analfabetos, de seres fisicamente debilitados. Levantamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo constatou que, enquanto o adolescente trabalhador pesa em média 34 quilos, o que apenas estuda tem 49 quilos. Os trabalhadores também são 13 centímetros mais baios, tem o braço 4 centímetros mais fino e o pescoço 2 centímetros mais fino. (CARVALHO, 23/11/96, p. 37)
Essa realidade não é segredo para o mundo. No ano de 1997, a primeira dama Ruth Cardoso, participando em Oslo, Noruega, da Conferência Internacional sobre o Trabalho Infantil, vivenciou a situação de estar representando o Brasil como um dos grandes exploradores da mão-de-obra infanto-juvenil como é o caso da Guatemala, Tailândia, Paquistão e Índia.
Os dados expostos pela primeira dama foram publicados na Revista Veja nº 44 de 5/11/97 por Bruno Paes Manso. A publicação traz a confirmação da estimativa governamental sobre os dados apresentados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O número estimado de crianças e adolescente nas frentes de trabalho manejando enxada e carregando tijolos é de 5 milhões, sem contar outras formas de exploração. A estatística apresenta um balanço de como esta situação se configura. Dos 5 milhões entre 5 e 14 anos de idade, meio milhão tem idade abaixo de 10 anos.
O discurso da primeira dama revelou que no ano de 97, 30 mil crianças foram retiradas do mercado informal de trabalho. Nos cálculos de Manso, para que os 5 milhões passem pelo mesmo processo, no ritmo dos programas do governo, serão necessários 170 anos. Um outro dado relevante apresentado pelo IBGE, segundo Manso, é de que além das crianças e adolescentes que já trabalham, 1 milhão estão em busca de emprego por falta de recursos das famílias.
Essa realidade catastrófica pode ser analisada de forma mais regionalizada para que possamos nos aprofundar em questões específicas em relação à exploração do trabalho infanto-juvenil no Brasil. É com esse objetivo que nos colocamos a tratar do trabalho infanto-juvenil como retroação histórica a partir de uma reflexão regionalizada.
Tomaremos a região Norte/Noroeste do Estado do Paraná, como base geográfica representativa no cenário nacional da indústria de agroexportação sustentada pela monocultura da cana.
O Estado do Paraná é grande produtor agrícola. A monocultura avança dia-a-dia seus campos de cultivo tornando a vida do homem rural quase inexistente. O principal cultivo é o da cana de açúcar para a produção de álcool. Essa cultura exige contingente elevado de mão-de-obra. A população trabalhadora produtiva envolvida no manejo do facão durante o corte da cana, historicamente, tem se constituído de adultos descartados pelo setor urbano da economia juntamente com seus filhos (crianças e adolescentes).
Esta constatação é resultado dos trabalhos realizados pela “CPI do Bóia-Fria” (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná. No ano de 1993, enquanto a cúpula mundial pela criança concluía que mundialmente se está produzindo uma população incapacitada de desenvolver suas potencialidades físicas e mentais, no Estado do Paraná, a CPI concluía seu relatório identificando a população infanto-juvenil explorada no meio rural.
Os relatos contidos no documento registram a presença de crianças trabalhando no meio rural ainda de chupeta. Chamou-nos atenção esse fato por entender que os prejuízos de uma nação que permite essa prática de exploração das futuras gerações são evidências de que sua economia prevalece orientada pela obtenção do lucro a qualquer preço.
No dia 25 de setembro de 1997, em Hong Kong, James Wolfenson, presidente do Bird (Banco Internacional de Desenvolvimento), ao falar na assembléia anual do Banco Mundial afirmava que “o lucro a qualquer preço não é mais o padrão do capitalismo internacional, embora esta visão ainda resista nos países do Terceiro Mundo”. (Folha de Londrina, editorial, 26/9/97)
A conduta de pagar qualquer preço para produzir lucro vem sendo discutida mundialmente diante das determinações capitalistas em relação ao trabalho infanto-juvenil. As constatações dos organismos supranacionais esclarecem a preocupação do capital internacional com a previsão do que podemos estar produzindo para o século XXI em termos de mão-de-obra produtiva. Podemos observar o manifesto contido no relatório de 1995 publicado pela UNICEF por entender que a criança está no centro da problemática do futuro da humanidade:
O UNICEF acredita que é chegado o momento de colocar as necessidades e os direitos da criança como ponto central nas estratégias de desenvolvimento.
Este argumento não se baseia nem em interesses institucionais particulares, nem em sentimentalismo com relação aos mais jovens; está baseado no fato de que a infância é o período no qual mentes e corpos e personalidades estão sendo formados, e durante o qual privações, ainda que temporárias, podem infligir prejuízos e distorções no desenvolvimento humano que serão sentidos por toda a vida. [...] o mundo não poderá resolver seus principais problemas enquanto não aprender a desempenhar-se melhor na tarefa de proteger e investir no desenvolvimento físico, mental e emocional de suas crianças. (UNICEF, 1995, p. 9).


A visão redentora implícita nas publicações da UNICEF em relação a criança como futuro da humanidade nos faz pensar no desdobramento das políticas nacionais e supranacionais diante da hipótese de que qualquer estratégia que se queira implementar em prol da criança estará fortemente fundamentada na preocupação com a falta de mão-de-obra, dentro de curto espaço de tempo, para sustentação do setor primário da economia mundial.
Se em 1995, a preocupação mundial com a criança e o adolescente é tomada como sendo um fator prioritário de desenvolvimento das nações, e se essa preocupação está intimamente relacionada com a formação física, mental e emocional dos seres humanos, isto se transforma, para uma reflexão didática, em questionamentos. Como podemos entender a prática de desrespeito a essa população a partir de informações regionalizadas?
Podemos partir da constatação jurídica legal no Brasil que nos diz que o corte da cana é trabalho penoso – aquele que desgasta o físico e provoca envelhecimento precoce – e que por lei é proibido para menores de 18 anos devido a série de males que causa à saúde. Waki, médico da Universidade de São Paulo, conforme publicação da Revista Veja, p. 36 de 23/10/96, diz que o trabalho na cana aumenta os riscos de doenças como mocardite, hipertensão arterial, arteriosclerose, enfisema pulmonar e afecções do aparelho reprodutor.
A outra questão a ser abordada é a fome endêmica compreendida como problema alimentar derivado das relações de dominação herdadas do colonialismo.
ABRAMOVAY (1996: 94), ao estudar a atualidade de Josué de Castro e a Situação alimentar Mundial, escreve que:
A gravidade do problema alimentar no meio rural é uma das mais veementes condenações do próprio modelo de desenvolvimento agrícola implantado na maior parte dos países do Terceiro Mundo que, muitas vezes, estimulou o aumento das safras, mas eliminou ou marginalizou do cenário as regiões e as populações que não podiam ter acesso às tecnologias em que se baseou a Revolução Verde.

O aumento das safras pela monocultura e o emprego de tecnologia pelos latifúndios, são as principais questões a serem entendidas. O cultivo da cana no norte/noroeste do Estado do Paraná tem sido sinônimo de empobrecimento da população trabalhadora, e da terra da região. Com a expansão das plantações de cana, ocorre substancial diminuição da produção de alimentos necessários à subsistência local em quantidade e qualidade/diversidade.
Outra informação a ser considerada como argumentação para o entendimento da fome endêmica na região é o uso de tecnologias avançadas em outros cultivos o que restringe a ocupação de trabalhadores braçais nas frentes de trabalho para o corte da cana. Essa atividade é temporária/intensa[1] e por produtividade, ou seja, o trabalhador recebe pela quantidade produzida e pela qualidade da cana colhida. Nas frentes de trabalho, conforme “CPI do Bóia-Fria” (1993), encontramos crianças e adolescentes.
Se o trabalho penoso, como já registramos, causa problemas à saúde do trabalhador adulto, o que seria possível analisar no caso de crianças e adolescentes?
Insistimos na reflexão sobre os prejuízos para vida destes seres em formação. Será possível avaliar o desgaste mental e emocional destes seres com a mesma precisão da avaliação física?
A deficiência alimentar aliada ao trabalho penoso, certamente, poderá justificar a maior parte dos problemas de saúde que estas pessoas manifestarão durante suas vidas. As conseqüências destes problemas infelizmente são observados pelos organismos internacionais apenas como prováveis perdas no contingente de mão-de-obra para o século XXI.
Sinaceur, da divisão de Filosofia da UNESCO, nos lembra a célebre advertência de Rousseau: “não conhecemos a infância e com nossas falsas idéias sobre a infância, quanto mais longe vamos, mais nos perdemos.” E salienta:
Não basta ter consciência de que os que rodeiam a criança desempenham papel importante em seu desenvolvimento e de que a criança é um pólo de expectativas e projetos mesmo antes de nascer. O mais importante é saber como essas expectativas e projetos repercutem na criança e até que ponto a predeterminam. (CORREIO DA UNESCO, 1978, p. 30).

Ao salientar que as crianças são seres predeterminados, nos damos conta de que as crianças e os adolescentes que trabalham na zona rural são influenciados pela organização do trabalho no setor agrícola e que os envolvidos com esse meio de produção desempenham importante papel na vida da criança e do adolescente e na conceituação de criança e adolescente.
O trabalho infanto-juvenil cria um novo conceito de criança e de adolescente. O conceito generalizado de infância e adolescência está distante dessa realidade. A linguagem, a resistência física, o autocontrole, a relação com os adultos, o compromisso com o trabalho, a competência para produzir a própria subsistência são evidências de uma nova concepção de formação humana.
Apesar das evidências, o que a nosso ver caracteriza de forma generalizada o novo conceito, é a idéia de produtividade. Para o setor explorador, fica delineado o conceito de homem-máquina durável de produzir para criança/adolescente-máquina descartável de produzir.
O principal argumento de confirmação para essa tese seria o não investimento na formação escolar da população trabalhadora na zona rural. A cultura da cana não permite que os trabalhadores residam no campo. Por esse motivo habitam as periferias das cidades. Considerando o desgaste físico e mental diário, pressupomos que as dificuldades em acompanhar os estudos do ensino regular tornam-se uma tarefa dolorosa e improdutiva.
Se um ser em fase de desenvolvimento físico-mental e emocional é tratado como uma coisa que não precisa de condições para estudar, para brincar, para conviver com a família, para realizar refeições equilibradas, para dormir, então não é tratado como humano. Ao contrário, é concebido como máquina. Mais que isso, é tratado como máquina descartável que ao apresentar qualquer problema pode ser substituída. É assim que temos analisado a conduta do explorador que modela essa criança-máquina, esse adolescente-máquina.
Consultando dados oficiais da UNESCO e da UNICEF entre outros organismos, encontramos tabelas demonstrativas de taxas de crescimento da população mundial com previsão até para o ano 2050. A leitura dos dados indica que há preocupação destes organismos em combater o trabalho infanto-juvenil por entenderem que as estimativas são de brusca diminuição da população mundial.
Essa diminuição é estatisticamente prevista nos países considerados em desenvolvimento e nos considerados menos avançados. Até o ano 2025 os índices demonstram 50% de diminuição da população. A diminuição vem sendo interpretada como previsível falta de trabalhadores devidamente adequados para os setores essenciais de produção.
Considerando o pensamento de Rousseau – em Sinaceur – nossas reflexões se voltam mais uma vez para o que entendemos ser primordial discutir: Como conceber a criança e o adolescente que tem sua consciência desconsiderada e sua identidade negada sob o conceito de máquina descartável de produzir? A aproximação de um conceito real pressupõe pensar a relação homem-máquina.
Buscaremos demonstrar alguns parâmetros para pensar a relação homem-máquina considerando a organização social do trabalho a base da argumentação. Deste modo podemos combinar as observações relacionadas a seguir como um guia para nossas posteriores reflexões.
Em se tratando do trabalho infanto-juvenil na zona rural, consideraremos o trabalho de corte da cana em terreno inclinado uma situação de análise na qual o homem e a máquina têm função de trabalho. Os parâmetros levantados são os abaixo relacionados:

Na situação exemplificada tanto o homem como a máquina podem cortar cana, mas somente o homem pode hoje cortar cana em terreno inclinado e amanhã em terreno plano com produção equivalente. Não existe um homem que corta cana somente em terreno inclinado e um que corta cana em terreno plano. A máquina necessita de adaptações mecânicas para realização de um mesmo tipo de trabalho em terrenos inclinados e planos.
Como podemos pensar a criança e o adolescente-máquina? É possível atribuir ao homem as características de uma máquina? Atribuir à máquina características humanas é um sonho pelo qual cientistas do mundo contemporâneo trabalham incessantemente com o reconhecimento da humanidade por demonstrarem as possibilidades de criação do homem. Mas como podemos avaliar aqueles que não são cientistas e insistem em atribuir ao homem função de máquina descartável de produzir?
Pensar o homem-máquina pressupõe negar a existência da emoção, da consciência, do pensamento, da reflexão, da organização. Significa desqualificar o homem enquanto ser humano, enquanto ser que pensa, que transmite seus pensamentos com linguagem própria, que evolui fisicamente, mentalmente e emocionalmente. Pensar este homem é pensar um ser sem possibilidades, um ser treinável e produtivo por um determinado tempo.
É a identificação dessa inversão de valores que nos ajudam a compreender a conduta dos que se utilizam desse conceito de homem. Como já registramos neste artigo, o número de seres humanos economicamente determinados como mão-de-obra produtiva e descartável no Brasil continua desconhecido. No Estado do Paraná a situação não é diferente, no entanto, podemos retomar a idéia de trabalhar o problema regionalizado para pontuar questões que podem ser generalizadas.
Primeiro vamos relacionar algumas práticas que nos mostram ações daqueles que se utilizam do homem-máquina infanto-juvenil conforme registro da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná no ano de 1993:

VALE DO IVAÍ EM 12/08/93[2]
Município de Faxinal: A CPI flagrou durante a madrugada, adolescente de 15 anos dirigindo trator que puxava carreta carregada de bóias-frias;
Município de Lunardelli: 7.500 habitantes. Destes, a cada 10 examinados, 6 eram portadores do bacilo da tuberculose e, dos eleitores, 66% eram analfabetos;
Municípios de São Pedro do Ivaí e São João do Ivaí: muitas crianças estão trabalhando na lavoura, outras se prostituindo e há alta incidência de gravidez na adolescência e há elevado índice de analfabetismo. Grande número de acidentes com veículos que transportam os bóias-frias.

REGIÃO NOROESTE EM 13/08/93[3]
Municípios de Paranavaí e Amaporã: A CPI encontra muitos caminhões transportando bóias-frias, entre eles dezenas de crianças. A comissão registra a seguinte frase dos trabalhadores: “aqui vai de mamando a caducando”.
Município de Querência do Norte: 10.400 habitantes, 6.200 bóias-frias (homens-mulheres-crianças);
Santa Cruz do Monte Castelo: 10.500 habitantes, todos bóias-frias.
A relatora da Comissão[4] registra o seguinte parecer: “Dessa conveniente simbiose nasce e floresce uma indústria de desrespeito à dignidade humana e aos valores sociais do trabalho.”
Em todo o documento é possível levantar práticas inaceitáveis ocorrendo, como transporte inseguro, concessão de alvará para emissão de carteira de trabalho de menores de 14 anos, compra de sindicalistas, trabalho escravo de crianças e adolescentes, entre outras. São as atitudes de desrespeito à vida humana que fundamentam a determinação do conceito de criança e adolescente específico do meio rural dedicado à monocultura da cana.
Conceber este ser como máquina, a nosso entender, extrapola o conceito de trabalhador escravo. O escravo podia sonhar com a fuga, com a compra da liberdade. O trabalhador concebido como máquina encontra-se sem possibilidade de sonhar com a fuga, muito menos de sonhar com a compra da liberdade de trabalho. Facilmente substituível. Sua falência não representa perda para essa forma de organização do trabalho.
O escravo tinha que ser comprado e, seu valor de venda devia ser conservado, isso determinava o lucro do proprietário. O “homem máquina” não precisa ser comprado, não precisa ser mantido em boas condições físicas e mentais e representa lucro garantido. A vida humana perde aí seu significado. É isso que transforma o homem em máquina. Máquina, porque pode ser manipulado para o trabalho através de regras de produção.
O “homem máquina” não precisa de segurança. Se morrer em acidente de transporte para o trabalho pode ser facilmente substituído e sem prejuízos. Não precisa de escola, não precisa pensar, não precisa ler e escrever, não tem que se comunicar, não lhe resta tempo para isso. Não há possibilidade de evoluir intelectual nem fisicamente.
Máquina também não precisa de alimentação e nem de atendimento à saúde, afinal máquina não adoece e quando quebra ou entra em falência é reposta. Como máquina não se organiza socialmente, então não precisa de sindicato. Como o uso da máquina independe de sua idade desde que seja produtiva e não cause problema, porque não pensar na utilização do trabalho da “máquina criança e adolescente”, portanto nova, em construção, passível de ser remodelada, tornada mais eficaz, mais rápida, mais precisa, mais produtiva do que é no estágio inicial de seu desempenho no trabalho.
Se assim o for não importará seu tempo de vida útil. Importará sua capacidade de produção, sua operacionalidade, sua reprodução em massa para a garantia da continuidade do sistema de produção lucrativo. Essa é a lógica do pensamento que podemos ler na realidade brasileira como justificativa econômica da prática social da utilização do trabalho infanto-juvenil de caráter penoso.
A retroalimentação desse sistema de exploração de mão-de-obra é possibilitada na medida da manutenção social dos meios de reprodução do conceito de homem máquina como sinônimo de desenvolvimento econômico.
Enquanto a criança e o adolescente continuarem sem possibilidade de desenvolvimento físico, mental, emocional e organizativo, não poderemos deixar de procurar entender os pensamentos que justificam a prática do homem que provoca a extinção de sua própria espécie. Será ele um ser humano? Será que ele possui inteligência humana? Que tipo de mente possui este homem?
Estas são as questões que acreditamos ainda merecerem atenção para a continuidade de nossa reflexão em momentos futuros. Mas como o objetivo deste artigo foi iniciar o estudo da lógica que sustenta a exploração do trabalho infanto-juvenil para dizer que esta prática, em nosso entender, significa a retroação da organização social do trabalho, acreditamos ter construído argumentos para atingir esse objetivo. As questões finais deixaremos como compromisso de retomar a reflexão em momento oportuno.

BIBLIOGRAFIA
1. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO PARANÁ. CPI do Bóia Fria. Relatório Final. Curitiba: 21/12/93.
2. BUTN, Grahan e outros. Pode uma máquina pensar? Marília: UNESP, 1997.
3. CARVALHO, Joaquim de. A Força Infantil: Enquanto o governo anuncia novas proibições, os menores dão um jeito de trabalhar. Revista Veja. São Paulo: Ed. Abril, 23/10/96.
4. CHURCHLAND, Paul M. Matter and conscionsness. Revised Edition, 1996.
5. DENNETT, Daniel Clement. Tipos de Mentes: Rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
6. DUPPUY, Jean Pierre. Nas origens da ciência cognitiva. Marília: UNESP, 1996.
7. MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. Tradução de Gaetano Lo Mônaco; revisão da tradução Rosa dos Anjos Oliveira e Paolo Nosella. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 1996.
8. MANSO, Bruno Paes. Mãos Pequenas: Um milhão de crianças procuram emprego. Revista Veja. São Paulo: Ed. Abril, 5/11/97.
9. MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos e outros textos escolhidos. Seleção de textos de José Arthur Giannotti. Traduções de José Carlos Bruni (ET AL.). 4ª Ed., São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores)
10. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertran do Brasil, 1996.
11. SEARLE, John R. A redescoberta da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
12. SINACEUR, Mohammed A. e Jean-Jacques Rousseau. Que a infância amadureça na criança. Correio da UNESCO. Fundação Getúlio Vargas, ano 6, nº 7, 1978.
13. SOARES, Adriana. O que são ciências cognitivas. São Paulo: Brasiliense, Primeiros Passos, 1993.
14. UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância. Relatório da reunião de 1990 da Cúpula Mundial pela Infância. Situação Mundial da Infância. São Paulo: UNICEF de Brasília, 1995.


NOTAS DE RODAPÉ
[1] Entende-se por atividade “temporária/intensa” o corte da cana em período de colheita da safra. “temporária” por compreender alguns meses de trabalho durante a safra. “Intensa” por ser desenvolvida em longa jornada de trabalho diário.
[2] Maiores informações podem ser encontradas no relatório final da CPI do Bóia-fria/93 – Assembléia Legislativa do Estado do Paraná – nas páginas 5 e 6.
[3] Idem
[4] Deputada Estadual Emília Belinati.

16 dezembro, 2009

O movimento da educação social

Maria Aparecida Cecílio[1]
Kiyome Hirose[2]
Professores do Departamento de Teoria e Prática da Educação - Universidade Estadual de Maringá (UEM); Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas e Gestão Educacional (GEPPGE-UEM).

OBSERVAÇÃO:
Trabalho apresentado na VI Semana de Educação na Universidade Estadual de Maringá – Campus de Cianorte/PR, realizada de 06 a 10 de novembro de 2000, publicado em anais, pág. 184 a 187, ISSN nº 1518-6180

A educação que hoje se movimenta junto a população trabalhadora despossuída de direitos sociais e humanos tem na alfabetização o princípio da ação socializadora de saberes populares e do conhecimento científico.
Nesse processo de intensa convivência com a diversidade socialmente produzida em consciência, colocamo-nos como parte que se propõe a falar de uma prática coletiva vivenciada no contato com as culturas variadas que se encontram unidas pela crença e desejo de construir um novo espaço de produção do conhecimento para a vida no campo, como afirma Paulo Freire, em sua obra “Pedagogia da Autonomia”
“[...] que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. (Freire, 1998)

Como o objetivo de socializar o trabalho realizado em mais de um ano de atividades educativas com a população de trabalhadores rurais sem terra organizados na região noroeste do Estado do Paraná, através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, em convênio com a Universidade Estadual de Maringá, registraremos a seguir um resumo das metodologias de trabalho que possibilitaram o desenvolvimento da convivência de diferentes grupos sociais, diferentes níveis de escolarização, com a mesma finalidade: construir um processo de alfabetização para o homem do campo.
Durante esse processo, a equipe de trabalho formado por professores universitários, acadêmicos de diferentes cursos, profissionais liberais da comunidade externa da Universidade e trabalhadores rurais representantes do MST, organizou e realizou 10 etapas de Curso de Formação dos Monitores Alfabetizadores, moradores em áreas de assentamento e acampamentos.
A equipe foi constituída inicialmente por três professores universitários, cinco acadêmicos e cinco coordenadores locais (trabalhadores rurais).
Aos professores ficaram as responsabilidades de coordenação geral (gestão junto ao INCRA[3] e MST[4]), coordenação pedagógica e orientação dos acadêmicos e coordenadores locais durante todo o processo de implantação e desenvolvimento das atividades planejadas em conjunto.
Aos acadêmicos coube a responsabilidade das atividades de articulação e apoio aos coordenadores locais e monitores alfabetizadores, com compromisso de realizar acompanhamentos bimestrais nas suas respectivas áreas, bem como auxiliar na mobilização da comunidade local para a formação dos grupos de estudos.
Aos coordenadores locais coube identificar geograficamente os grupos de trabalhadores rurais sem terra para formar os grupos de estudos, como também de fazer a intermediação dos anseios dos monitores alfabetizadores e da coordenação do movimento com a dinâmica do desenvolvimento do processo. Preocupar-se em realizar a sua formação continuada, como também de se estar presente, pelo menos uma vez ao mês, junto a comunidade dos grupos de estudos e seus respectivos monitores alfabetizadores, estimulando-os e a outros moradores para participarem do processo, despertando a necessidade de saber ler e escrever no mundo em que vivemos.
As etapas foram realizadas inicialmente no Assentamento Padre Josimo, município de Cruzeiro do Sul. Na medida das necessidades, procurou-se explorar outros ambientes, como o do espaço da escola municipal daquela cidade, da própria Universidade, por contar com laboratórios e equipamentos que facilitaram a prática de trabalho de aprendizagem e de ensino como:
· Laboratório de Anatomia Humana
· Laboratório de Geografia Humana
· Horto Medicinal
· Biblioteca Central
· Laboratório de Apoio Pedagógico
· Auditório Ney Marques
· NPD – Núcleo de Processamento de Dados
Após a realização de cada etapa de formação pedagógica continuada, todos os envolvidos: a equipe pedagógica, a equipe coordenadora de trabalhadores e os monitores alfabetizadores participantes, registraram oralmente e graficamente suas avaliações e sugestões que validaram as propostas de cada encontro de estudos.
Os monitores alfabetizadores são trabalhadores rurais que vivem em áreas de assentamento na Região Noroeste de nosso Estado, indicados pela direção regional do MST, após discussão e definição de critérios básicos para a classificação dos aceitos para constituírem o grupo de trabalho que posteriormente formariam em suas áreas de atuação, grupos de estudos e alfabetização, assumindo a responsabilidade de acompanhar os estudos de seus integrantes baseado nas etapas de formação e nas visitas de acompanhamento político pedagógico dos acadêmicos.
O aporte teórico que norteou os princípios alfabetizadores praticados neste processo encontrou em PAULO FREIRE as metodologias de planejamento de ação coletiva que atenderam aos princípios educativos do MST. Na tentativa de ampliar o reflexionamento de teorias de cunho socialista pressupostos como fundamentais na busca da construção de um processo de alfabetização de caráter coletivo, a coordenação pedagógica, a equipe acadêmica, os coordenadores locais tomaram como função o fomento de encontros semanais para conhecimento de biografias de pensadores socialistas que, num momento histórico, contribuíram na realização de práticas pedagógicas coletivas. Estudar continuamente a prática social histórica e cultural do MST foi condição indispensável para o desenvolvimento prático das ações pedagógicas propostas na caminhada.
Além desse aporte teórico, as segundas feiras foram destinadas para avaliação das atividades como cursos, acompanhamentos, formação continuada, planejamento e produção do jornal “A Educação em Movimento”, organização dos relatórios, encaminhamento dos exames de equivalência e produção de livros.
A sustentação de todo o trabalho proposto na busca de alternativa de construção do conhecimento não foi encontrada nas convenções tradicionais sobre o ato educativo. O encontro do espaço intelectual alternativo só foi possível através de ações participativas, interativas, que necessitaram de um conhecimento mais amplo possível de seu campo de atuação, de caráter popular, que se vinculassem à vivência e necessidades do trabalhador rural sem terra.
A preocupação no atendimento a integridade humana nesse processo nos fez buscar aportes de diferentes áreas de atuação e que nesse momento foi priorizado o aspecto afetivo e biossocial.
Levantar as necessidades básicas dos participantes foi outra atividade que demandou a vinda de outros profissionais, como por exemplo, da contribuição de uma psicóloga que pudesse estar ajudando a resgatar a auto estima, bem como estar interpretando o sentimento de exclusão. Em relação a saúde física, a contribuição dos odontólogos foi fundamental, pois jovens adolescentes com comprometimentos severos em suas arcadas dentárias foi uma constância.
Mediante o trabalho desenvolvido, constatamos alguns aspectos educativos que nos dão as bases da distinção existente entre o processo educativo convencional e o não convencional.
A avaliação participativa como garantia de espaço de redimensão político pedagógica, mesmo produzindo conflitos de ordem ideológica, proporciona o debate e o embate de diferentes consciências sobre o mesmo objeto de análise.
O segundo aspecto que identificamos é o respeito mútuo que é possível desenvolver em um grupo formado por pessoas de diferentes níveis escolares. Doutores e agricultores conseguem elaborar uma linguagem que atende a necessidade de comunicação, possibilitando a ambos a re-elaboração dos conhecimentos empíricos e teóricos.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] E-mail: maacecilio@hotmail.com
[2] E-mail: hirosekiyomi@yahoo.com.br
[3] INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
[4] MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

14 dezembro, 2009

Educação e consciência sóciopolítica dos assentados do MST

Elias Canuto Brandão
Doutor em Sociologia; Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas e Gestão Educacional (GEPPGE-UEM); Coordenador do Coletivo de Estudos e Educação em Direitos Humanos de Maringá/PR (CEEDH).
OBSERVAÇÃO:
Estudo apresentado na VI Semana de Educação na Universidade Estadual de Maringá – Campus de Cianorte/PR, realizada de 06 a 10 de novembro de 2000. Foi publicado nos Anais, pág. 179 a 183, ISSN nº 1518-6180

A pesquisa de campo aqui apresentada foi desenvolvida no Assentamento Pontal do Tigre, município de Querência do Norte/PR, nos anos de 1999 e 2000, para a conclusão do Mestrado em Educação, com o título: “Educação e consciência: a formação da consciência sociopolítica dos trabalhadores rurais assentados” do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Na pesquisa discutimos alguns pontos peculiares que foram revelados durante a realização das entrevistas.
A pesquisa teve por objetivo compreender se acontece formação e socialização do conhecimento sociopolítico entre os assentados e verificar se os assentados têm consciência política da organização e do Movimento Sem Terra.
A área do assentamento pesquisado tem 10.800 hectares e pertenceu ao Grupo Atalla[1]. Hoje encontram-se assentadas na área entre 326 e 336 famílias, conhecidas como provenientes dos grupos vindos dos municípios de Amaporã, Reserva, Castro, Capanema, ADECOM – Associação de Desenvolvimento Comunitário de Querência do Norte – e Tibagi, ou seja, procedentes das regiões noroeste, centro, oeste e sudoeste do Estado do Paraná, atualmente organizadas internamente em 34 núcleos familiares.
A longa distância geográfica entre Universidade, pesquisador e assentamento, possibilitou realização de oito viagens de até três dias cada. Para a realização da pesquisa utilizamos num primeiro momento, visitas e distribuição de questionários a todos os assentados. Foram respondidos e devolvidos menos de 50% dos questionários. Num segundo momento realizamos entrevistas gravadas e filmadas. Num terceiro e último momento algumas pessoas do Movimento verificaram junto aos assentados alguns dados incompletos. Atualmente a pesquisa está concluída.
Desenvolvemos os estudos sobre à “formação da consciência sócio-política” dos assentados por entendermos que o meio social onde os trabalhadores vivem pareceu-nos determinante da formação da consciência.
Observamos que o meio onde estão inseridos influenciou e influencia a aquisição e a formação/deformação da consciência. Constatamos que a participação no Movimento contribuiu para que avançassem de um estágio de senso comum e ingênuo para instâncias diferenciadas da consciência, resultado das diferentes atividades e funções exercidas internamente e externamente no Movimento e da representatividade ou responsabilidade de cada assentado durante o tempo em que estiveram acampados.
Constatamos no trabalho de campo que a adesão ao Movimento foi um primeiro passo ao avanço no conhecimento e da consciência pelo fato de estarem acompanhando a vivenciando de perto os problemas, as decisões e os conflitos diretos e indiretos.
Verificamos pela pesquisa que alguns assentados ampliaram mais que outros as formas de consciência.
Constatamos também que não há nem “acontece” trabalhos que possibilitem a formação dos assentados e conseqüentemente a formação da consciência social e política. Nossa hipótese inicial de que todos possuíssem “consciência social e política” foi nocauteada pela pesquisa de campo.
Constatamos que menos de 20% dos assentados “possuem” consciência “social e política”. Observamos que vários fatores contribuem para que os assentados não sejam conscientes social e politicamente, entre eles, a forma de organização interna do assentamento e a condução política administrativa da coordenação do MST na região de Querência do Norte.
Observamos que a “consciência social e política” na minoria dos assentamentos é consequência de um conjunto de acontecimentos sociais, políticos e econômicos internos e externos ao Movimento e pelo que constatamos tende a ser sufocado e substituído pelos interesses pessoais/individuais de cada um em seu lote.
Verificamos que os assentados perceberam que evoluíram no nível de conhecimento, mesmo que minimamente:
[...] A nossa vida [...] é igual uma escada, que a gente pisou no primeiro degrau, que a gente pisou no segundo degrau. Hoje em dia nós estamos em volta do meio da escada [...], a gente já subiu esses quatorze[2] degrau [...], a gente conseguiu aprender várias coisas [...], a gente conseguiu compreender melhor os companheiros não sei se os companheiros conseguiu entender melhor a gente [....][3].
A pesquisa foi fruto do desconhecimento da formação intelectual dos assentados, levando-nos a buscar respostas através de pesquisas de campo e bibliográfica.
Para a realização do trabalho de campo, destacamos duas fundamentais questões: acontece a formação e a socialização do conhecimento sócio-político entre os assentados? Os assentados têm consciência política da organização e do Movimento?
As constatações foram organizadas em quatro capítulos.
No primeiro discutimos a história do Movimento Sem Terra; sua relação com a UDR – União Democrática Ruralista; a violência no campo; o papel da Comissão Pastoral da Terra no surgimento do Movimento Sem Terra e o apoio da sociedade ao Movimento dos Sem Terra.
No segundo realizamos um estudo do mundo dos assentados do Pontal do Tigre a partir da história de vida e procedência dos grupos, passando por ocupações, organização, produção e comercialização. Verificamos as diferenças ideológicas entre eles, assim como a educação, as negociações e os despejos, sem esquecer as prisões, perseguições e o papel e “participação” da mulher no decorrer da organização dos acampamentos, ocupações e assentamento.
No terceiro capítulo desenvolvemos um estudo teórico sobre a consciência ingênua, filosófica; crítica; sócio-política organizativa, ética e pedagógica, discutindo a formação política ideológica e a capacitação como embasamento pessoal teórico-pedagógico, no intuito de realizarmos com maior segurança no quarto capítulo um estudo das constatações realizadas pelos questionários e entrevistas junto aos assentados.
No quarto e último capítulo retomamos a história dos assentados e comentamos nossas observações sobre a formação da consciência social e política. Verificamos que atualmente, no geral do assentamento, não acontece formação e socialização do conhecimento, com raras exceções dos que estão envolvidos em coordenações, formação de jovens e adultos ou trabalhos assistenciais. Neste capítulo estudamos a formação da consciência; as experiências e aprendizagens; as diferenças culturais; o meio social; o sonho pela unidade no assentamento; o individualismo; a educação no assentamento e a consciência política dos assentados sobre a organização e o Movimento Sem Terra.
Para evitarmos constrangimento aos quarenta e quatro assentados e assentadas – trinta e três homens e onze mulheres – que participaram da pesquisa de campo, optamos por universalizarmos o termo “assentado” e citá-los como “assentados” – independente do gênero, etnia e cultura.
Alguns assentados participaram indiretamente assistindo-nos e conduzindo-nos nas visitas aos coordenadores e outros confirmando algumas informações.
Lembramos que na elaboração inicial de nosso projeto em 1998, hipoteticamente alocamos que:
As ocupações, o acampamento, as negociações com o Estado, as assembléias, marchas e todas as atividades que antecede o assentamento definitivo, são formas de aprendizagens que os participantes do MST adquirem, resultando na formação da consciência sócio-política. Penso que tais experiências não são aprendidas na escola convencional e por isso constitui um referencial da vida e de sobrevivência a todos os envolvidos no processo da conquista da terra – no processo da concretização da Reforma Agrária[4].
Constatamos que em parte a hipótese não se distanciou da realidade. No entanto, as formas de aprendizagens atuais que poderiam formar a consciência sócio-política, observamos estar restrita a menos de 20% dos assentados.
Verificamos em nossos estudos que mais de 80% encontram-se em estágios diferenciados de consciência. Observamos assentados que poderíamos catalogar como portadores de consciência crítica; outros portadores de consciência filosófica; outros ainda apenas com consciência política e, assim sucessivamente.
Observamos que pelo fato de as diferentes famílias inserirem-se no Movimento Sem Terra, apesar de muitas delas não se considerarem do MST, a inserção possibilitou participação em discussões políticas antes não vivenciadas, convivências com diferenças culturais e divergências de idéias, “passagem” de uma instância considerada de consciência comum ou ingênua para instâncias diferenciadas.
Constatamos que “talvez” por falta de uma política de incentivo, acompanhamento, assistência técnica, formação e politização dos assentados, mais de 80% deles podem ser manipulados ou dirigidos e revoltarem-se, como já observamos estar acontecendo, contra as lideranças e o Movimento Sem Terra, causando transtornos internos e externos.
Observamos haver entre os assentados o desejo de mudanças no relacionamento para eliminar as diferenças entre eles e entre muitos deles e as lideranças. Constatamos ainda interesse na unidade, apesar da diversidade, entre os diferentes grupos ou núcleos do assentamento e a direção, desde que seja respeitado as diversidades e diferenças internas culturais e políticas, acompanhadas de mudanças na direção do Movimento e na condução política administrativa do assentamento e do Movimento local.
Verificamos que discordam e criticam lideranças por que percebem que algumas atitudes e ações não estão coerentes com os princípios do Movimento a nível.
Observamos defenderem o Movimento Sem Terra e não pessoas lideranças no e do Movimento.
Constatamos que vários assentados, por cobrarem mudanças, sofrem pressões e afastam-se das atividades internas e externas do Movimento e se fecham cada um em seu lote.
Nossa conclusão, diante das diferentes análises dos dados e fatos catalogados durante a pesquisa de campo é de que os assentados, portadores de consciência social e política, que não atingem 20% do total dos assentados, não compreenderam as consequências dos conflitos e divergências internas, acompanhadas da ausência de formação permanente e politização dos assentados como fator importante de sobrevivência do assentamento que já sofre, observamos, consequências das políticas de globalização do sistema capitalista, apêndice das políticas financeiras do Banco Mundial e do FMI.
Observamos finalmente, não terem-se atentado à organização do Mercosul que já começa prejudicar os pequenos agricultores da América Latina, independente da forma como estejam organizados social, econômica e politicamente.
NOTAS DE RODAPÉ:
[1] Grupo Atalla: Grupo de proprietários da Fazenda 29, conhecida como Pontal do Tigre e da Usina de açúcar e álcool em Porecatu/PR, entre “outras” que desconhecemos.
[2] Quatorze degraus por que a maioria dos assentados do Pontal do Tigre estão a mais ou menos quatorze anos participando do processo de reforma agrária e esta entrevista foi realizada em fevereiro/março de 2000.
[3] Assentado R – Entrevista: 13/02/2000, p. 38 – Manuscrito.
[4] Resumo apresentado no Seminário Científico de Dissertações e Teses na UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba/SP, em 1999.

12 dezembro, 2009

EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA NO CAMPO: Perspectivas de sobrevivência

Elias Canuto Brandão
Doutor em Sociologia; Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas e Gestão Educacional (GEPPGE-UEM); Coordenador do Coletivo de Estudos e Educação em Direitos Humanos de Maringá/PR (CEEDH).
OBSERVAÇÃO:
Artigo inicialmente publicado nos Anais do III Simpósio Internacional – Processo Civilizador: Educação, História e Lazer. 11 a 13/11/1998: ANAIS, Piracicaba/SP, Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), pág. 100 a 112.


“Falar em violência, no Brasil,
é falar, principalmente,
da participação ativa ou
da omissão deliberada do Estado,
tanto na cidade, como no campo.
É falar da ação concreta dos
aparelhos repressivos
do Estado e de particulares,
através da violência física,
mais explícita e direta;
ou da ausência
das mais elementares formas
de políticas sociais,
que vai minando lentamente
as possibilidades de vida
de grande parte da população.
[...]
Muito embora
os números de conflitos e assassinatos
tenham declinado,
convém lembrar que
a gravidade da violência no campo,
não se limita ao número elevado de conflitos.
O mais grave são as
formas refinadas da violência.
É a pedagogia do terror seletivo,
utilizado para golpear
as organizações dos trabalhadores
e destruir
os meios de produção dos pobres do campo, submetê-los.
Assim, não se mata aleatoriamente.”
(CPT, Conflitos no Campo – Brasil/1991, p. 32)


No presente estudo discuto os conflitos e violências no campo após o final da década de 70, a partir da ótica de que os conflitos e violências, em si, são fatores educativos. Os trabalhadores envolvidos – homens, mulheres e crianças, jovens e velhos – aprendem a se defender e discutir alternativas para não sofrerem tanto, mesmo sabendo que certas ações adversárias são inevitáveis e por demais violentas.
Se preparam psicologicamente e tentam sob e sobre todas as formas evitar o conflito, através do diálogo com os comandantes em serviço da Polícia Militar, com a justiça, com as igrejas, com os secretários de Estado e com o governo. Contatam a imprensa, quando há tempo, para documentarem a ação da política e se aproximam da sociedade para fazerem compreender que a luta pela conquista da terra, que desencadeiam, é justa e necessária. O conflito e violência no campo, assim como nas cidades é, em si, um curso intensivo, para o qual não acontece em salas de aulas, com carteiras, nem livros. É uma aprendizagem direta, por vezes sangrenta, prevalecendo a lei do mais forte, desrespeitando a Constituição do Brasil e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Apesar da violência no campo acontecer desde a antigüidade, perpassando a Roma Antiga e a Grécia, o Ocidente, o Oriente e a Idade Média, persistindo na Contemporaneidade, não se justifica sua existência.
No Brasil, os conflitos no campo são marcas registradas desde a invasão portuguesa, espanhola e francesa no século XVI, quando iniciaram a exploração destas terras, dizimando os nativos e dividindo as “terras a vista” em Sesmarias – em grandes latifúndios – em parte, administrados a longa distância, por famílias residentes em Portugal.
Na mesma lógica, os latifundiários contemporâneos residem nas cidades metrópoles e administram a longa distância suas terras em qualquer parte do Brasil. A diferença é a comunicação. Hoje a comunicação é direta e imediata. O latifundiário passa as ordens por telefone celular ao administrador-funcionário e recebe informações sobre qualquer problema em suas terras via telefone, fax ou internet. Mesmo a longa distância contrata jagunços e, sem participar diretamente de um conflito, ordena suas milícias a defenderem sua propriedade.
A violência no campo acontece através de modalidades bem definidas:
- trabalho escravo;
- mortes anunciadas;
- crimes de autoridades e policiais;
- omissão das autoridades;
- impunidades;
- ameaças;
- exploração do trabalho infantil...
Sobre os conflitos e violências, Moacyr de Oliveira Filho, disse que os mesmos ocorrem porque os grandes proprietários procuram:
[...] manter, a ferro e fogo, o latifúndio extrativista ou pecuarista. Como, na esteira desse processo, milhares de trabalhadores foram ficando e estão sem terra ou com pouca terra. O pano de fundo do conflito de Rio Maria – Sul do Pará – é assim o monopólio da propriedade da terra[...] (FILHO, 1991, PP. 11/12).
O Brasil está entre os países que mais concentra terra nas mãos de poucos grandes latifúndios e onde a concentração é demais escandalosa. A concentração e a forma de utilização da terra concentrada margea a sociedade, o direito e a oportunidade de acesso à mesma através de limites muitas vezes intransponíveis. Devido a forma de concentração, presenciamos os mais diferentes tipos de conflitos e violências:
· Massacre de Eldorado/PA;
· Violência contra lideranças e pessoas isoladas;
· Assassinatos de lideranças dos sem terra, sindicalistas, lideranças de associações ou cooperativas de pequenos agricultores, advogados, agentes pastorais e religiosos (Ex.: execução de Diniz Bento da Silva, o Teixeirinha, em Campo Bonito/PR, em março de 1993);
· Ameaças de mortes ou perseguições (Ex.: agressão e tentativa de assassinato sobre Maurício Fernandes Gutierres, em Piabiru/PR, em 05 de outubro de 1989 e ameaças de morte sobre: Pe. Francisco Prim, de Campo Mourão/PR; Elias Canuto Brandão, da CPT/PR e Zilda de Nova Cantu/PR, entre outros pelo Brasil);
· Massacre dos Inocentes de Corumbiara/RO;
· Ações judiciais contra lideranças do MST;
· Mortes no campo;
· Exploração da mão-de-obra infanto-juvenil na zona rural;
· Gritos e ameaças contra crianças acampadas;
· Pobreza e marginalização;
· Humilhações praticadas por policiais e jagunços sobre famílias trabalhadoras acampadas...
Apesar das lutas pela terra no Brasil serem históricas, enfatizarei a problemática da violência a partir da organização do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em 1978.
Naquele ano surgem lutas isoladas no Rio Grande do Sul. Em 1979, ainda no Rio Grande do Sul, ocorrem ocupações em duas fazendas e, no Paraná, devido a desalojação de agricultores pela construção da barragem da Binacional Itaipu, os mesmos se organizam para exigir terra e criam o Movimento Terra e Justiça. A partir de então, o Movimento evolui em todos os Estados, respeitando alguns processos de organização.
Três momentos marcaram oficialmente o nascimento do MST.
- Primeiro foi um grande encontro de trabalhadores rurais sem terra das regiões Centro, Sudeste e Sul do País no Município de Medianeira/PR, em julho de 1982.
- Segundo foi a realização do I Encontro Nacional do MST, entre 21 e 24 de janeiro de 1984, em Cascavel/PR.
- Terceiro foi a organização do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a participação da 1.500 lavradores de 23 estados brasileiros, convidados e representantes de organizações de trabalhadores rurais de vários países da América Latina, ocorrido entre 29 e 31 de janeiro de 1985, em Curitiba/PR. A partir deste Congresso o Movimento tende a crescer em busca da conquista da terra.
Por um lado organizou-se o MST e por outro, como resposta, organizou-se também a UDR – União Democrática Ruralista. O primeiro, objetivando reconquistar a terra pela ocupação organizada e pela resistência. O segundo, defender o latifúndio pelas milícias, pelas armas e pelas ameaças e intimidações. A UDR, nasceu em maio de 1985, em Goiás, no ano seguinte à organização do MST, objetivando impedir que as classes trabalhadoras participassem na luta pela Reforma Agrária e pelo processo político. Como na época, o MST, ainda novo e se estruturando, tinha o apoio direito de entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Comissão Pastoral da Terra (CPT), a UDR passou a comprar armas e atacar estas entidades ameaçando vários agentes de pastorais, líderes sindicais, religiosos e advogados.
Um fazendeiro integrante da direção nacional e presidente da UDR de Goiás, no início de sua criação chegou a dizer:
Hoje já podemos confessar que, realmente, compramos armas com os leilões. No primeiro, realizado em Goiânia, adquirimos 1.636 armas. Com o segundo, em Presidente Prudente (SP), adquirimos mais 2.430 armas e aí proliferaram as UDRs. Atualmente, temos mais ou menos 70 mil armas, representando a cabeça de cada homem da UDR, homens que deixaram de ser omissos na história do nosso país (A OFENSIVA DA DIREITA NO CAMPO, p. 21 – In.: O Germinal – Centro Oeste/GO, 1987).
A mídia nos mostra imagens de violências que, devido a sua constância, torna-se corriqueira e banal. A sociedade acostuma-se com a violência que passa a fazer parte do cotidiano[1]. Isto não significa que a sociedade exima-se em evitá-la. O desafio contemporâneo apresenta-se como a necessidade de desenvolver a arte de conviver com a violência, seja ela urbana ou rural, com indignação e compromisso com sua erradicação.
Até na década de 50, a população estava, em sua maioria, no campo. Após os anos 60, a política brasileira, em atenção às exigências externas – FMI, Banco Mundial,... – dobra-se mais do que suas possibilidades e potencialidades para captar recursos e indústrias e o processo se inverte.
Se antes o governo deva atenção aos agricultores, a partir de então, quem recebe atenção são os empresários. Deixa de existir uma política agrícola que apóia e incentiva os pequenos produtores que plantavam para subsistência e o incentivo volta-se à política para exportação. Cresce o setor industrial, comercial e as cidades.
A falta de incentivo ao pequeno agricultor e de uma política agrícola e agrária o desanima. A falta de preços sobre os produtos colhidos é fator determinante no desencadeamento da imigração. As cidades passam a ser um sonho “possível” devido a industrialização, sofrendo um crescimento desordenado e problemas estruturais e econômicos. As cidades não comportam a multidão que a ela se dirigiu. O salário mínimo achatou-se; criou-se problemas de moradia, água e esgoto; surgem as favelas; assaltos; falta de emprego para todos; drogas; assassinatos; violências urbanas; problemas familiares; falta de escola, saúde e lazer.
A população rural que chegava às cidades não tinha profissão ou especialização. Os mais jovens tiveram mais oportunidades de se encaixarem no setor secundário ou terciário. Os mais velhos perambularam biscateando, ora serventes de pedreiro, ora bóias-fria, ora guardas ou vigias, ora pau para qualquer obra...
Problemas como estes levaram e levam muitas famílias a lutar pela volta ao campo, mesmo que no trajeto tenham que enfrentar outras violências.
Desde o final da década de 70, a população que antes sonhara com empregos inexistentes nas cidades e sentindo-se à mercê dos acontecimentos estruturais e conjunturais, desempregada, sem possibilidade de futuro na zona urbana e com vasta experiência de trabalho no campo, sonha com a volta à terra e por ela passa a lutar.
Passam a fazer parte do Movimento Sem Terra, do Sul ao Norte do País, na concretização da Reforma Agrária – resguardado no Estatuto da Terra – e anunciada pelo Governo Federal desde o início dos anos 60 e concretizada em mobilizações, ocupações e/ou acampamentos[2] somente no final do regime militar.
O pesadelo das cidades (subemprego, violência urbana, assassinatos, drogas...) e o sonho pela terra, resulta em um novo pesadelo: os conflitos com as milícias organizadas pelos latifúndios e o confronto é inevitável.
As reações dos proprietários ou supostos proprietários, ocorrem de acordo com as ações do MST. No caso da organização de acampamentos, a reação ocorre após a efetivação dos mesmos.
Muitos latifúndios, em várias partes do Brasil, são formados pelas terras que pertenceram aos governos estaduais e que foram ocupadas pelos fazendeiros há anos atrás, ou formados por terras griladas de sitiantes a volta das fazendas expulsos pelas ameaças, ou pelas invasões das cercas, ou adquirida a qualquer preço sob pressão e ameaças. Muitos latifúndios o são não porque os seus proprietários trabalharam para aquisição, mas porque a conjuntura econômica e política do Estado desfavoreceu os agricultores e, a estrutura de defesa inexistente possibilitou as ações que concretizaram as situações de negociação forçada de venda de pequenas propriedades.
À medida que os trabalhadores rurais encurralados pelo desemprego e inchaço das cidades e pela concentração da terra nas mãos de latifundiários, participaram ou participam das ocupações, o que se presencia é a violência.
Ameaças, perseguições, assassinatos e prisões ilegais de trabalhadores se tornam práticas conhecidas. Participam deste conjunto ameaçador os fazendeiros, os jagunços, os policiais e boa parte da imprensa através da manipulação indevida das notícias veiculadas. Sobre a violência em geral recai a impunidade.
É espantoso o número de líderes rurais assassinados por pistoleiros a soldo de grandes latifundiários. E é lamentável a impunidade alimentada pela deficiências e vícios dos aparelhamentos policiais e judiciais. De 1985 ao primeiro semestre de 1990, foram assassinados 520 trabalhadores rurais. Nos chamados “tribunais dos crimes do latifúndio”, o advogado Arthur Lavigne denunciou que cerca de sessenta advogados populares, que defendiam posseiros, foram mortos, entre 1977 e 1988.
Em geral, os assassinatos têm motivação política, atingindo principalmente líderes específicos, e são cometidos por pessoas que, na maioria dos casos, escapam à identificação (BICUDO, 1994, pp. 17-18).
A violência no campo parece não ter fim. Não porque a sociedade não queira. A questão é política. O Estado, enquanto administrador, não desenvolve ações concretas de políticas agrícola e agrária que viabilize a justiça social. Falar não é fazer.
Se houvesse uma política agrária que fixasse o homem no campo, haveria violência no campo? Pelas análises de muitos economistas, sociólogos, antropólogos, educadores, religiosos e sindicalistas, não. Mas, o desenvolvimento de uma política agrária e agrícola séria, voltada à agricultura familiar, não faz parte dos planos dos governos da direita que historicamente, até este final de século XX, administraram os estados e a nação brasileira. Em épocas de campanha eleitorais ou em momentos de tensão social no campo, o governo apressa-se em apresentar planos de reforma agrária, não por ser uma questão de interesse político e econômico, nem prioridade e sim para tentar amenizar as tensões em evidências.
Os Sem Terra, pensamos, não participam em ocupações e acampamentos por prazer. A necessidade de garantir um meio digno de sobrevivência é que prevalece. Não enfrentam um despejo porque querem sentir o gosto de levar cassetadas de policiais que obedecem ordens judiciais. Enfrentam porque querem garantir o direito de viver plantando, colhendo e se alimentando com o que produzem na terra. A autorização da justiça para que a violência seja realizada oficialmente e cumprida pelo Estado, através da polícia, caracteriza tipos de violência as quais podemos chamar violência legal e violência ilegal.
Nem os advogados escapam ou escaparam à violência ilegal, ameaças ou tentativas de assassinatos.
O Advogado Antônio Evaristo de Moraes Filho, Coordenador-Geral da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, em pronunciamento durante a Sessão do Dia 18 de Dezembro de 1985, em Marabá/PA, diante dos fatos ocorridos naquela cidade, semelhantes aos que ocorrem pelo Brasil, disse:
[...] os advogados, que se arrojam na defesa dos camponeses, são dominados pela mesma sensação de impotência, que desabava sobre nós, defensores de presos políticos, nos tempos da ditadura. Sentimos no ar o conluio entre o poder econômico do latifúndio e as forças estatais incumbidas de manter a ordem e de distribuir justiça. Vimos que os muros desta cidade de Marabá são cobertos de dísticos reveladores de que o povo está descrente dos homens da lei. E não é para menos, diante da despudorada impunidade que desfrutam os usurpadores da terra, mandantes dos massacres. São freqüentes as denúncias sobre o conúbio de jagunços com os policiais, supostamente incumbidos de combater os pistoleiros de aluguel (OAB), P. 61).

No final de seu pronunciamento, o Advogado sintetiza:

[...] sem concretizarmos uma Reforma Agrária autêntica, que reflita os anseios da Justiça Social, não teremos a paz no campo, paz que surgirá como uma alvorada, marcando uma etapa de nossa luta por um mundo mais fraterno e melhor (OAB, p. 62).

Por outro lado, esta não é a visão dos proprietários rurais. Para estes, os sem terra são “invasores” de propriedades alheias e o governo é culpado pelos acontecimentos e conflitos no campo. Para a Federação da Agricultura do Paraná (FAEP), a impunidade leva os sem terra “invadirem” as propriedades particulares.

Uma vez mais a Federação da Agricultura reafirma que a questão central das invasões está na impunidade que os governos concedem ao MST, cuja lógica está na impunidade que os governos concedem ao MST, cuja lógica reacionária é o seu próprio entendimento de ser a vanguarda de uma nova ordem social para o Brasil, daí seu envolvimento político eleitoral, suas ações de rapinagem em saques e roubos e sua invasões de prédios públicos.
Tal lógica faz com que o MST tenha como princípio o acerto de contas, revanchista, entre sem-terras e produtores rurais, cuja tática é o confronto e a intimidação, procurando dar a entender à sociedade que quando realizam invasões é uma questão de justiça social e que quando, nesse contexto, os produtores rurais exercem a defesa de seus patrimônios, ou então a Justiça concede reintegração de posse, tais ações são violentas legitimadas (MENEGUETE, 1998, p. 2).

Pesquisando as violências, observa-se que quase cem por centro são provocadas ou pelos proprietários, ou pela justiça e ou pelos policiais com a conivência do Estado. A própria fala do presidente da FAEP, no Paraná, deixou claro que os produtores “exercem a defesa de seus patrimônios” também sem a concessão da reintegração de posse, causando ações violentas. Quando a concessão da reintegração é feita, a violência tem a legitimidade da lei.
Parece-nos que não justifica a violência policial o fato dos trabalhadores rurais sem terra terem realizado uma ocupação ou acampamento. As ocupações são respostas à organização do modelo econômico do sistema capitalista e à política de exclusão social.
Os excluídos necessitam sobreviver e não tendo emprego, moradia, saúde e educação nas cidades para onde migraram, não vêem outra alternativa a não ser reocuparem a terra de onde foram forçados a sair.
A violência processada no meio rural tem sido fruto da otimização das políticas do descompromisso social com a questão agrária. A violência que se manifesta no compasso das lutas pela terra, são explicadas politicamente como estratégias de manutenção da ordem social vigente. Enquanto que para o MST, fechar uma agência bancária ou fazer uma ocupação ou acampamento, é participar do direito de viver; para os latifundiários, essa ação é sinônimo de violência. Enquanto a fome e o desemprego, são sinônimos de violência social para o MST, para os latifundiários e para os governos, são problemas de ordem estrutural a serem acomodados. Essa realidade de compreensão nos mostram a violência como uma reação do sistema para impedir que setores organizados da sociedade o desestruture.
Compreendemos que estes pensamentos explicam a violência que ocorre por abuso de poder por todo o Brasil através de decisões do judiciário ou do executivo ou por parte do comando da polícia militar que, por reiteradas vezes, resulta em confronto. Dois casos ocorridos em 1998, em Estados diferentes ilustram as violências, ameaças ou intimidações. No primeiro caso, a Polícia Militar de Goiás monta operação de guerra para despejar, ilegalmente, famílias acampadas. No segundo, mesmo tendo a Juíza de Joinville/SC, negado o pedido de reintegração de posse de uma fazenda ocupada, os policias fizeram repressão e ameaças, atirando para o alto.
Primeiro caso:

Eram quatro horas e meia da madrugada de domingo, 31 de maio, quando 250 homens da Polícia Militar de Goiás invadiram o acampamento Alta Floresta, no município de Itaguari, e realizaram o mais violento despejo da história da luta pela terra no Estado. Foram usados cavalos, cachorros, armas pesadas e até helicóptero. Uma verdadeira operação de guerra para realizar o despejo de 275 famílias sem terra.
A PM seguiu à risca as determinações do ex-ministro da Justiça, Íris Rezende, de usar a força contra os sem terra. No final do ano passado, ainda no cargo, Íris chegou a autorizar a participação de fazendeiros e pistoleiros nos despejos de trabalhadores rurais, numa reunião com secretários estaduais de Segurança Pública de todo o país.
A maioria dos sem terra estava dormindo quando a PM chegou e não teve tempo de reagir. Os policiais colocavam cavalos para pisar nos trabalhadores, soltavam os cachorros dentro dos barracos, batiam com cassetetes, cabo de armas e baionetes.
Após o massacre os policiais mandaram todos os sem terra deitarem no chão, apontaram armas e gritaram frases provocativas. Algumas crianças que choravam deitadas no chão tiveram os dedos das mãos pisoteados por PMs. Por volta das 8 horas, 26 trabalhadores foram presos e levados para a delegacia de Itaguari onde foram mantidos incomunicáveis, entre eles lideranças do MST. As famílias foram jogadas em cima de caminhões e despejadas em Taquaral, um município vizinho. A polícia ainda roubou dinheiro de vários sem terra.
Quarenta e cinco trabalhadores ficaram com ferimentos graves (JORNAL SEM TERRA, 1998, p. 6).

Segundo caso:

Cerca de 300 famílias de trabalhadores rurais sem terra ocuparam a fazenda Pirabeiraba, em Joinville, na madrugada de 6 de junho [...]. A área [...] tem mais de 3 mil hectares, improdutivos e desmatados. Existe uma usina de açucar desativada e abandonada há anos.
O proprietário entrou com pedido de reintegração de posse no mesmo dia da ocupação. A juíza da Comarca de Joinville negou o pedido. Ela considerou insuficientes as provas apresentadas e quis ouvir o MST. [...] A mobilização contou com o apoio da população local. Muitas pessoas demonstraram solidariedade à luta dos sem terra. No Fórum, a polícia aguardava os manifestantes.
A repressão da polícia também foi constante no acampamento. Policiais davam tiros para o alto, soltavam bombas próximo ao local e desfilavam em cavalos e caminhonetes com armas pesadas e coletes à prova de bala (JORNAL SEM TERRA, 1998, p. 7).

Observando os problemas de violência de Norte a Sul e de Leste a Oeste no Brasil, o advogado e deputado Aldo Arantes (PCdoB-GO), entende que o “Poder Judiciário é parte do Estado e defende os interesses dessa elite e dessa instituição de poder. É por isso que reina a impunidade da violência contra os trabalhadores” (FILGUEIRAS, 1997, p. 9).
Preocupado com o que vem acontecendo no campo e com a forma como os juizes encaminham os processos, o advogado João Luiz Duboc Pinaud[3], entende que:

A realidade político-jurídica dos que trabalham no campo e são dele excluído não será vista e compreendida através das lentes dos relatos formais sobre ela mesma. O conflito trágico que não aparece nos muitos discursos jurídicos, na doutrina conservadora, na jurisprudência dominantemente escravocrata e, menos ainda, nas leis. Todas as justificações “jurídicas” do latifúndio em detrimento dos camponeses reiteram os pactos – expressos ou tácitos – que legisladores e juízes sempre fizeram com os escravocratas senhores da terra.
São urgentes as tarefas jurídicas dentro das alternativas de produzir conhecimento sobre essa realidade, tornar conhecida a fratura externa do nosso sistema econômico, desvendar os discursos implícitos ou não, para tentar desestruturar o poder que fala através dessas linguagens. E auxiliar, por exemplo, o Movimento dos Sem Terra não só a lograr realizar inteiramente o seu ser, auto-instituir-se e auto-organizar-se contra uma “ordem” legal injusta e em favor de outra ordem justa das relações entre pessoas (PINAUD, 1996, p. 838).

Transportando esta produção de conhecimento para a análise educativa, podemos dizer que os conflitos são educativos, são aprendizagens indispensáveis. Não significa que seja uma escola. Mas à medida que pessoas e famílias participam de uma organização como a do MST, com o objetivo de ocupar e produzir, acampando, fechando estradas, postos de pedágios, instituições governamentais e bancos, estão elas estudando alternativas de não se confrontar diretamente com a reação violenta do Estado, através do Poder Judiciário, representado pela força policial, milícias armadas e jagunços. Estas famílias estão, inegavelmente, produzindo conhecimento sobre essa realidade.
Os trabalhadores não apanham porque gostam e nem resistem por prazer. A ciência da condição precária de vida e da realidade, garante a sustentação dos atos políticos e a busca de alternativas para fugirem dos confrontos.
A agressão e a pancadaria estratégica da polícia com seu batalhão de choque, cavalaria e cachorros, apoiados e assessorados pelos fazendeiros, com ajuda de jagunços e milícias armadas, podem ser facilmente rastreados nos jornais como ação em favor da manutenção da ordem social vigente. Ao educador, as estratégias militares podem ser interpretadas como conteúdos oficiais a serem apreendidos para que a defesa possa ser planejada. Nessa história, o aprendiz é o futuro educador. O aprendiz é o agricultor que apanha e apreende que bater não é defesa, é ataque, é agressão, é desrespeito aos direitos humanos natos a todos os cidadãos.
É na busca da defesa que o Movimento produz conhecimento, Conhecimento dos direitos humanos, constitucionais e legais.
Esse processo é educativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS DE RODAPÉ
[1] Comentando o fenômeno da violência e o risco da sociedade banalizá-la, a CPT descreveu que “A violência no Brasil [...] é um fenômeno estrutural, está enraizada no ethos social, entranhada em nosso modo ‘jeitoso’ de ser. Muitas vezes exacerbada, persistente sempre, tornou-se corriqueira, banalizada; parece Ter embotado nossa capacidade de indignação. Com muitas faces, nem sempre evidente, exercida de modo polivalente, nos espaços infinitesimais da vida cotidiana, a violência nossa de cada dia constitui um desafio à compreensão, maior ainda à superação” (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo – Brasil-94. Goiânia/GO, p. 7).
[2] Há pessoas, grupos e MCS, que chamam as ocupações de invasões. Não fará parte do meu vocabulário o termo invasão, pois, entendemos que, o que objetivam os participantes do MST é ocuparem terras ociosas ou largadas ao mato. Para as ocupações, realizam levantamento a respeito da área para saberem a quem pertence. Se está produzindo e devidamente documentada. Se deve ao Estado ou à União. Qual a possibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária. Após os estudos e a certeza, acreditamos, realizam a ação.
[3] João Luiz Duboc Pinaud, é membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Consultor Jurídico da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB e Coordenador do Instituto de Pesquisas Jurídico-Sociais e Políticas (STVDIVM).

11 dezembro, 2009

Educação e trabalho na zona rural: a construção intelectual do trabalhador infanto-juvenil explorado em atividades braçais

Maria Aparecida Cecílio
Doutora em Educação; Profª do Depto de Teoria e Prática da Educação na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM. E-mail: maacecilio@hotmail.com
OBSERVAÇÃO:
Artigo publicado na Revista COMUNICAÇÕES, da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP/SP, Ano 5, número 2, novembro 98, pp. 125 a 132 – ISSN 0104-8481. A partir de 2002 a Revista Comunicações disponibilizou os artigos online. Como este artigo foi publicado três anos antes e já se passarem 10 anos, estamos disponibilizando online.

O objetivo do presente artigo é discutir a educação das crianças e dos adolescentes que trabalham na zona rural no Norte e Noroeste do Estado do Paraná, pensando sua construção intelectual, acreditando que o desenvolvimento biopsicológico e social do homem é prejudicado pelo condicionamento do trabalho iniciado na infância.
Mais do que delinear um problema tão amplo e antigo, mostro algumas faces da vida que se processa nessa dinâmica de exclusão de monocultura de exportação da mão-de-obra no setor rural, mais precisamente na produção de monocultura de exportação, com a preocupação de contribuir para a compreensão das conseqüências vividas pelo homem em decorrência da exploração de sua mão-de-obra na infância e na adolescência. Afinal, como se processa sua construção intelectual?
A constatação de que crianças e adolescentes são explorados como mão-de-obra de baixo custo nas atividades agrícolas e desassistidos pelo sistema educacional é concretizada pela mídia e por alguns sindicatos que representam os trabalhadores rurais. No entanto, a constatação tem sido o limite da ação social.
No dia 1º de maio de 1997, o jornal Folha de São Paulo divulgou resultado de pesquisa realizada em sete Estados brasileiros demonstrando o mapa da concentração de mão-de-obra infantil em caderno especial, com o título: “Trabalho Infantil: Infância roubada”.
Os resultados da pesquisa mostram a falta de políticas públicas voltadas para a questão e a omissão dos governantes frente a essa prática que é justificada em muitos casos a partir da reflexão de que as crianças vivem melhor se estiverem trabalhando.
No dia 5 de maio do mesmo ano, a Folha de São Paulo, dando continuidade à pesquisa, divulgou a iniciativa do governo paranaense com o programa Da rua para a escola, de combate à exploração infantil. A matéria de Leobet registra que desde 1995, 30 mil crianças foram atendidas e que, segundo dados de 1993 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, de 4.380.901 pessoas economicamente ativas no Paraná 268.781 estão na faixa etária de 10 a 14 anos, e 364.914, entre 15 e 17 anos. Estes dados comprovam que o índice de trabalho infantil urbano no Estado do Paraná é alto e significativo como índice de população excluída do sistema educacional. O mais preocupante é saber que estes números são amostra da situação na zona urbana, enquanto na zona rural a situação é ignorada em índice.
A fome, como conseqüência dos problemas que envolvem a vida rural neste final de século, passa a ser um parâmetro para a análise da problemática da exploração de mão-de-obra assalariada de modo geral e vem tomando corpo de discurso na justificativa para a exploração do trabalho infanto-juvenil. A opinião pública sobre a exploração de mão-de-obra dessa faixa etária se manifesta de forma generalizada e sem uma análise cuidadosa dos prejuízos biopsicológicos e sociais que representam para as novas gerações de brasileiros.
Observamos que a mídia, apesar de sua valiosa contribuição na discussão da problemática, abre espaço para denúncias de casos específicos de exploração com ênfase nos meses de maio, julho e dezembro de cada ano. Podemos verificá-lo a título de exemplo na revista Nova Escola, nº 75, maio/94; Gazeta do Povo, 17/07/96; O Estado do Paraná, 04/12/96, e outros. Isto caracteriza que o assunto não é tratado com freqüência e continuidade, mas como uma fatalidade que deve ser denunciada a cada nova forma de exploração descoberta. A idéia, de que é melhor a criança e o adolescente estarem trabalhando do que estarem na rua, limita ao senso comum a discussão veiculada pela mídia sobre as condições de vida infanto-juvenil. A vida da criança como ser em desenvolvimento, sendo influenciada pelo meio social e desrespeitada em seus direitos básicos, é apresentada como uma fatalidade.
A demonstração de obras assistências paliativas e isoladas na lida com a questão, que geralmente são apresentadas como soluções, digamos, de ordem filantrópica, caracteriza uma certa responsabilização da sociedade civil em relação à problemática. Dificilmente a mídia se volta para a sociedade política cobrando compromissos de garantia dos direitos humanos, por exemplo, como responsabilidade também governamental.
O trabalho braçal exige das crianças e adolescentes uma longa jornada diária na zona rural, o que em parte os impede de freqüentar uma escola. Essa é uma questão de nossa discussão na busca da compreensão dos prejuízos que a exploração do trabalho infanto-juvenil causa à natureza humana.
No Estado do Paraná, a população de trabalhadores braçais da zona rural está concentrada na produção de cana e algodão. São trabalhadores que pernoitam nas periferias das cidades ou vilas residenciais construídas especialmente para eles e na maioria das vezes por eles; o que significa, por um lado, produção de riqueza e, por outro, produção de doenças, de analfabetos, de sem teto, de sem terra, de sem salário, de sem garantia de emprego: a produção de um exército de trabalhadores descartáveis.
Essa população de trabalhadores é composta de homens, mulheres, crianças e adolescentes. O que distingue a realidade das relações de trabalho do campo em relação a cidade não é apenas a espécie de serviço que os trabalhadores executam. A relação de trabalho que se estabelece no campo é fator de distinção. O agravante nas relações de trabalho no campo tem sido a segregação da criança e do adolescente como mão-de-obra a ser preparada para se tornar produtiva, para garantir o ritmo acelerado da agroindústria de exportação.
A necessidade capitalista da garantia de que é possível continuar produzindo cada vez mais, de que é possível continuar exportando cada vez mais, conduz os donos dos meios de produção a medidas econômicas de utilização da mão-de-obra infantil no sentido de prepará-la para produzir mediante suas expectativas de exportador. Essa utilização, a nosso ver, é camuflada, às vezes até com a ajuda dos sindicatos dos trabalhadores rurais que nem sempre representam o trabalhador rural. Esse preparo começa muito cedo transformando-se em um impedimento da permanência da criança na escola[1]. A idéia de que é preciso ser produtivo é difundida entre os trabalhadores que passam a se preocupar em garantir aos filhos a profissão, mesmo que a profissão seja de cortador de cana.
Há preocupação entre os produtores brasileiros de cana-de-açúcar em continuar disputando mercado para consumo de seus produtos. Na argumentação dos representantes brasileiros junto aos Ministros do Mercado Comum do Sul-MERCOSUL sobre a importância de não se respeitar a lei argentina que tende a limitar a importação de açúcar brasileiro, o jornal Gazeta Mercantil Latino-americaca de 13 a 19/10/97 registra à, pág. 4, o seguinte discurso:
No caso do açúcar, esse afã defensivo nos fez esquecer que o Brasil possui uma área cultivada dez vezes superior, com duas safras açucareiras anuais de produto com maior porcentagem de sacarose comparado com o produzido por um setor que não foi convertido o suficiente e que produz com um custo substancialmente mais alto.
Para que esta posição brasileira no mercado seja uma realidade, há que se questionar por quais vias se torna possível uma produção de menor custo que a produção Argentina? A reflexão mediada pelos acontecimentos do campo suporta a hipótese da via da exploração da mão-de-obra dos trabalhadores que executam suas tarefas no meio agrícola. Entre os canavieiros, por exemplo, são de conhecimento comum os detalhes sobre os critérios dos donos dos meios de produção para a contratação de trabalhadores. A idade produtiva é o critério número um. Dos 14 aos 55 anos as pessoas são consideradas produtivas. Refletindo estes dados, podemos concluir que para um trabalhador ser produtivo a partir dos 14 anos, é preciso que ele tenha executado o serviço braçal há alguns anos. Essa dedução nos dá aparatos para pensar que esse período anterior aos 14 anos nada mais é do que o período de exploração informal da mão-de-obra infantil.
Essa idade não definida cronologicamente apenas. A criança que é levada para o trabalho desde os 5 anos de idade, conforme denúncias da mídia, passa por um processo de condicionamento biológico e psicológico. Podemos pensar no condicionamento que leva os empregadores a determinarem que aos 14 anos a pessoa apresenta as condições exigidas para execução da tarefa diária no corte da cana por exemplo. Quais são as características consideradas importantes para essa consideração cronológica ser real? Difícil responder. O que podemos é relembrar os indícios e as constatações desse real.
No ano de 1993, deputados estaduais formaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI com o objetivo de investigar as condições de vida do bóia-fria no Estado do Paraná. O trabalho foi proposto pelo deputado Luiz Henrique Bona Turra, após ter lido no jornal Folha de São Paulo, do dia 28 de fevereiro de 1993, que crianças de apenas 4 anos de idade estavam trabalhando de bóias-frias no município de Querência do Norte, na região noroeste do Estado do Paraná. A denúncia levou a comissão a visitar alguns municípios à procura de informações sobre a veracidade dos dados publicados e tomar depoimentos de autoridades públicas, sindicais e de representantes de instituições.
Em 1996 a Delegacia Regional do Trabalho-DRT, através de um estudo no Estado do Paraná para o Ministério do Trabalho, constatou que a situação tem se agravado. Frente aos resultados de dados como da CPI e da DRT, constata-se que não existe iniciativa governamental para recensear essa população no sentido de providenciar políticas públicas efetivas. Foram anos de prejuízo na vida de um número não mensurado de crianças. O número de crianças trabalhadoras registrado e publicado pela DRT corresponde a algo próximo à metade das crianças paranaenses recenseadas. A maioria encontra-se trabalhando na zona rural em atividades informais.
Tanto a CPI como a equipe de trabalho da DRT, constataram que autoridades públicas e sindicais, de modo geral, contribuem para que a situação se agrave. O que se conhece nesta questão é que tanto o trabalho da CPI quanto o trabalho da DRT, até o momento, limitam-se a constatação dos casos existentes. Os membros da CPI se queixam da forma como o Estado encara os dados por eles levantados, pois não são considerados científicos. São considerados estatísticas não respeitáveis por não fazerem parte de uma pesquisa científica, por serem apenas um levantamento. Há informações desencontradas quanto ao número de bóias-frias existentes no Estado. A Comissão Pastoral da Terra-CPT faz uma estimativa, a Secretaria de Estado da Agricultura faz uma outra, por sinal nada próxima à da CPT, e a Secretaria de Estado da Educação trabalha com dados totalmente diferentes.
A CPI mesmo conhecendo as denúncias dos depoentes, conforme relatório final encerrado no dia 21 de dezembro de 1993, não conseguiu exigir do Executivo ou do Judiciário providências sobre os fatos. Observamos que as autoridades ouvidas pela CPI declaram conhecimento de que as denúncias têm fundamento, mas nada fazem. Tomo como exemplo o depoimento do então Secretário de Estado da Agricultura, Osmar Fernandes Dias. Ele faz a seguinte afirmação: não há gravidade no fato de o menor estar trabalhando no campo, mas sim nas condições em que isto está ocorrendo e que devem ser corrigidas (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, 1993, p. 16). Deixa claro que é perfeitamente normal a utilização do trabalho infanto-juvenil. Nesta mesma linha de pensamento depôs o então Presidente da Federação da Agricultura do Estado do Paraná-FAEP, Ágide Meneguette, quando ponderou que a instabilidade dos ‘bóias-frias’ e dos volantes enseja a proteção legal porque, caso contrário, continuarão à mercê da sorte (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, 1993, p. 23). A Consolidação das Leis Trabalhistas-CLT e o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA não são lembrados como legislação já existente. Tais posições caracterizam concordância com a exploração da mão-de-obra adulta e infantil, contribuindo para que a criança e o adolescente fiquem fora da escola.
Enquanto a discussão em torno do número de bóias-frias continua sendo uma incógnita, crianças e adolescentes continuam sendo submetidos a uma carga horária de trabalho por dia que as impede do convívio social e os distancia do sistema educacional. Disse em depoimento à CPI do Bóia-Fria a então Delegada Regional do Trabalho no Paraná, Ivanira Tereza G. Marques Gomes de Pinheiro, que Juízes concedem alvará para emissão de carteira de trabalho a menores de 14 anos (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, 1993, p. 20), dificultando a fiscalização da Delegacia.
Famílias de assalariados rurais continuam migrando à busca de trabalho e o tráfico de influência continua a garantir a autorização para transporte de trabalhadores em veículos irregulares. Além disso, continuam ocorrendo acidentes envolvendo crianças. Pinheiro salienta que, em se tratando de acidentes de trabalho, há dificuldades da DRT em identificá-los porque não tem acesso aos dados que são repassados pelos hospitais ao INSS (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, 1993, p. 20).
A fala de comprometimento político dos governantes leva os funcionários do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social-IPARDES a mapearem o Estado para a identificação dos terrenos mais frágeis que são utilizados para culturas artesanais e denominaram esta região como ramal da fome, segundo Elvira Maria Soares Chaves, socióloga e diretora do IPARDES. (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, 1993, p. 15).
Durante os trabalhos de inquérito realizado pela comissão de deputados, muitas autoridades foram ouvidas. Os discursos registrados não se opõem ao trabalho infanto-juvenil. O registro da idéia da necessidade de se rever as condições de trabalho das crianças e adolescentes sustenta os depoimentos mais avançados que a CPI conseguiu reunir em documento.
Outra face dessa situação é o aumento do número de analfabetos que se vem produzindo com estas atitudes. Se nos detivermos ao intervalo de 3 anos entre a CPI e o levantamento da DRT, não será difícil concluir que aqueles que em 93 tinham 11 anos de idade, em 1996, ano da CPI, já completaram 14 ou 15 anos e já foram incorporados ao trabalho sem condições de freqüentar escola. Isso nos faz pressupor que a incorporação da criança significa a produção de um número desconhecido de analfabetos que raramente terão condições de usufruir de seus direitos de cidadão à saúde, educação e lazer, quando criança; às conquistas trabalhistas durante a idade produtiva e, muito menos, ao benefício da aposentadoria ao atingir a terceira idade, uma vez que
O desgaste físico e mental é detectado após os 50 anos já com sérias conseqüências. Os critérios que definem essa faixa etária é resultado da quantidade produzida pelas pessoas no dia-a-dia de trabalho e a resistência física que conseguem manter até os 55 anos no máximo. (CECÍLIO, 1997, p. 27)
De acordo com Carlos Lorena (In MINAYO, M.C.S. org. Raízes da Fome/85, p. 111), a exploração da mão-de-obra na zona rural, além de se apropriar da força de trabalho das pessoas, apropria-se do direito de determinar o tempo de uso dessa força utilizando como medida a capacidade de produção e lembra que as crianças e os adolescentes não estão isentos dessas determinações.
Diante da realidade social de pobreza e de miséria presente em nosso país, sabemos que é completo falar do óbvio sem ser interpretado como idealista. Por isso consideramos importante ressaltar que autoridades econômicas mundiais começaram a tratar com medidas de defesa o exército de famintos existentes nos países de Terceiro Mundo considerando estar atingindo a problemática das desigualdades sociais. No dia 25 de setembro de 1997, em Hong Kong, o presidente do BIRD, James Wolfensohn, conforme editorial do jornal Folha de Londrina, de 26/9/97, exortou a comunidade internacional presente na reunião anual do Banco Mundial a agir imediatamente para se diminuiu a pobreza no mundo dizendo que “a crescente brecha entre ricos e pobres é uma bomba-relógio que pode explodir no rosto de nossos filhos” (Folha de Londrina, 26/9/97 – editorial).
Sabemos que sonhar com uma realidade diferente é fundamental para que possamos pensar os problemas que afetam a população de crianças e adolescentes que não são recenseadas pelo IBGE. População que em muitas regiões do Brasil não existe legalmente por não possuir registro de nascimento e falecimento, por estar esquecida pelo sistema educacional e de saúde, uma vez que o IBGE é o órgão oficial responsável para produção de subsídio orçamentário.
Essa realidade que envolve a população infanto-juvenil, de modo especial, no norte e noroeste do Estado do Paraná, merece nossa atenção. Constatamos que o trabalhador na zona rural como cidadão excluído dos direitos básicos para sua formação pessoal como educação, saúde, lazer e convivência familiar, vive um conflito de identidade e passa a se excluir das atividades educativas que ainda são possíveis em sua vida. Para discutir essa condição de vida, entendemos ser necessário a compreensão do homem em formação em seu meio físico, social e cultural, pensando sua educação, uma vez que no Paraná, o número de evasão das escolas públicas nas séries iniciais do primeiro grau são divulgados pela Secretaria da Educação de Estado sem grandes expectativas de reversão da situação.
O prof. Jefferson Mainardes, ao falar na 11ª sessão do fórum em Defesa da Escola Pública, Gratuita e Universal, no dia 19/05/94, dizia que no ano de 1994, a Secretaria de Estado da Educação trabalhava com dados de aprovação, retenção e evasão dos anos 89/90, para organizar programa estratégico para o ensino de 1º grau no Estado do Paraná. Talvez isso ajude a explicar o porquê os atuais governantes discutem as arbitrariedades sociais entre educação e trabalho, no final dos anos 90, com o pressuposto político de que uma cesta básica garantirá o retorno do evadido para a escola ou, então, discutem como penalizar o pai e a mãe que deixam o filho fora da escola.
É fundamental conhecer o que entra em discussão em relação às obrigações do Estado para com as crianças e adolescentes da zona rural paranaense que são utilizadas como mão-de-obra lucrativa para os produtores rurais. De acordo com as informações publicadas pelo prof. Mainardes, podemos verificar que os índices governamentais que sustentam as políticas educacionais são desatualizados. Será essa uma prática estratégica?
Essa fragmentação do problema que marca divisas entre o discurso político e a prática social gera a cumplicidade dos pais que justificam a necessidade de trabalho dos filhos diante de sua situação de desemprego, sonegando até por falta de esclarecimento, os prejuízos acarretados ao filho. Para os pais de crianças e adolescentes trabalhadores de modo geral, a escola poderia atender seus filhos no período noturno e a situação seria contornada.
O atendimento especial é legalmente condicionado aos dispositivos do estatuto da criança e do adolescente. As escolas só podem aceitar matrícula para o período noturno, após os 14 anos de idade ou mediante autorização judicial. A ambigüidade de interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente nos permite observar que, ao garantir os direitos infanto-juvenis, o documento-lei estipula regras que isentam a discussão da questão pelo sistema educacional. Temos uma legislação que, apesar de consideráveis avanços, é punitiva no trato com pais e professores, ao mesmo tempo que isenta a escola da discussão do problema, não apenas como um problema da educação escolar mas como um problema de amplitude social.
Diante dessas pontuações, – diga-se de passagem, essa realidade não é uma realidade particular do Estado do Paraná – entendemos que o trabalho da criança e do adolescente deva ser discutido pela sociedade com o amparo de educadores, por serem eles os interlocutores sociais das causas que levam a criança e o adolescente a não conseguir se manter no sistema educacional que ainda hoje vigora em nosso país.
O que provoca essa vontade de falar sobre a falta de condições para a permanência da criança e do adolescente trabalhador da zona rural na escola e suas conseqüências é, em última instância, a constatação de que, em número inestimável, vivem à margem do sistema econômico-social-político e educacional. Pensar essa população excluída dos direitos humanos e constitucionais nos parece uma contradição tão exposta a ponto de ser vista como normal. Afinal, toda cidade tem criança fora da escola! Toda família de trabalhador tem analfabetos! No Brasil morrem crianças por desnutrição diariamente! Tudo isso é tão óbvio que passa a ser normal. Passa a ser problema sem solução. Passa a ser problema sempre da sociedade.
É essa pseudonormalidade que quisemos contemplar diante dos problemas levantados neste artigo. São problemas que, de modo geral, se refletem no âmbito do espaço escolar, o que nos leva a considerar que é função social da escola interagir nessa dinâmica como instância à qual se atribui o papel de educar para a sociedade. Ou será que o processo de criação da Lei 9.394/96 de 86 a 96 já imprimia no contexto escolar a idéia de que a escola deve se ater à formação de mão-de-obra para o mercado formal como tarefa fundamental? Será que essa década contribuiu para a solidificação do mercado informal de trabalho na zona rural sem que o setor educacional discutisse a problemática da segregação da mão-de-obra infanto-juvenil?
Diante deste panorama de questionamentos, nossa referência à exploração do trabalho da criança e do adolescente na zona rural do Norte e Noroeste do Estado do Paraná teve a pretensão de traçar algumas fronteiras de uma realidade concreta e caracterizada pela crueldade do sistema político/econômico brasileiro que extrai da terra sua fonte de riqueza e a transforma em fonte de miséria humana. Essa é a contradição básica que fundamenta a necessidade de uma ação científica no sentido de inferir essa realidade pela discussão sistemática e fundamentada em dados atualizados que não se encerram neste artigo.

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NOTAS DE RODAPÉ
[1] Constatações realizadas em minha pesquisa de mestrado “Avaliação e educação popular”.